08/07/2009

rodízio de roupa

Nos primeiros dias, fiquei intrigada com o fato de que a maioria das crianças que brincavam perto das mulheres ou as ajudavam nas cavernas eram meninos, e pensei se este seria outro vilarejo onde se praticava o infanticídio de meninas. Mais tarde apurei que a causa era a escassez de roupas. Quando uma família ganhava roupa nova, a cada três ou cinco anos, vestia primeiro os meninos. As meninas, geralmente várias delas, compartilhavam um único vestuário para usar fora de casa, que tinha de servir em todas. As irmãs ficavam sentadas no kang, cobertas com um grande lençol, e faziam rodízio da roupa para sair e ajudar a mãe.

Havia uma família com oito filhas e só uma calça, tão remendada que mal se via o tecido original. A mãe estava grávida pela nona vez, mas o kang da família não era maior do que o de famílias com três ou quatro filhos. As oito meninas ficavam sentadas no kang, costurando sapatos numa divisão rigorosa de tarefas, como uma linha de montagem numa pequena oficina. Riam e tagarelavam enquanto trabalhavam. Toda vez que conversávamos, elas falavam do que tinham visto e ouvido no dia em que tinham “vestido roupa”. Cada uma delas contava os dias para chegar sua vez de “vestir roupa”. Falavam todas contentes sobre famílias em que ia haver um casamento ou funeral, as que tinham tido um menino ou menina, que homem batia na mulher, ou quem tinha xingado a quem. Falavam principalmente de homens da aldeia. (...)

 
Nas mais de duas semanas que passei com elas, quase nunca as ouvi falar sobre mulheres. Quando eu deliberadamente conduzia a conversa para temas como estilos de cabelo, roupas, maquiagem ou outros assuntos de interesse feminino no mundo lá fora, as meninas geralmente não tinham idéia do que estava falando. Para elas, o modo como as mulheres viviam na colina dos Gritos era a única maneira concebível de viver. Não ousei lhes contar sobre o mundo nem sobre a vida das mulheres fora do povoado, pois viver com o conhecimento do que elas jamais teriam seria muito mais trágico do que apenas viver como viviam.

Livro: As boas mulheres da China - Xinran - Ed. Companhia das Letras; Fotos Umbro



Conteúdo protegido por direitos autorais. Texto contido no livro "As boas mulheres da China". Imagens coletadas a partir das fontes acima citadas. Todos os direitos reservados.]

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